
Em um domingo comum, milhões de brasileiros entram em templos evangélicos carregando não apenas sua fé, mas também seus cartões de crédito, envelopes com dinheiro e aplicativos de pagamento instantâneo. O ritual se repete semanalmente: pastores convocam os fiéis a “honrar a Deus” com suas finanças, prometendo bênçãos e prosperidade em troca de contribuições generosas.
O que muitos não sabem é para onde vai esse dinheiro depois que sai de suas mãos. Uma investigação conduzida ao longo dos últimos meses revela um sistema complexo que transforma a fé em um negócio altamente lucrativo, onde pastores acumulam fortunas enquanto seus seguidores permanecem na esperança de uma prosperidade que raramente chega.
“Ou dá a oferta porque ama ou dá a oferta porque é constrangido. Azar o dele”, afirmou o pastor Silas Malafaia em um vídeo onde ensina estratégias para arrecadar dinheiro. A frase resume uma mentalidade que se espalhou por igrejas de todo o Brasil: a contribuição financeira não é opcional, mas uma obrigação disfarçada de ato de fé.
Enquanto isso, líderes religiosos multiplicam seu patrimônio em proporções inexplicáveis, como o pastor Virgínio de Carvalho, da Assembleia de Deus em Sergipe, que aumentou sua fortuna em 5.800% em apenas uma década. Outros usam a estrutura de igrejas para atividades ainda mais questionáveis, como lavagem de dinheiro do crime organizado.
Esta reportagem investiga como funciona esse sistema, desde a base ideológica que o sustenta até os métodos de arrecadação, o destino dos recursos e as lacunas legais que permitem sua perpetuação.
A Teologia da Prosperidade como Base Ideológica
Para entender como igrejas se transformaram em máquinas de arrecadação, é preciso conhecer a Teologia da Prosperidade, doutrina que relaciona diretamente fé e dinheiro. Nascida nos Estados Unidos no início do século XX, essa corrente teológica teve como principal divulgador o pastor Kenneth Hagin, que afirmava que a fé tinha o poder de transformar a realidade material.
No Brasil, essa doutrina encontrou terreno fértil e foi adaptada por líderes como Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, e Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. A mensagem central é simples e atraente: Deus quer que seus seguidores sejam prósperos, e a prova dessa prosperidade é o sucesso financeiro.
Essa teologia se sustenta em três pilares fundamentais:
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A culpa é sempre do fiel: se a vida não melhora, é porque você não contribuiu o bastante ou não tem fé suficiente.
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O pastor é um intermediário direto de Deus: ele tem “autoridade espiritual” para determinar bênçãos e maldições, o que lhe confere poder inquestionável.
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Dinheiro é sinal de santidade: se o pastor é rico, é porque Deus está abençoando sua igreja e seu ministério.
“Se você está desempregado ou passando dificuldades, o problema não é a falta de políticas públicas ou o impacto da economia. O problema, segundo essa doutrina, é você mesmo. Ou você tem fé e contribui com oferta e dízimo ou está condenado a continuar sofrendo”, explica o teólogo Paulo Romeiro, autor de livros sobre distorções doutrinárias.
Essa lógica cria um ciclo perfeito: o fiel doa na esperança de prosperar; se não prospera, é incentivado a doar ainda mais; enquanto isso, o pastor enriquece, o que “comprova” que sua doutrina funciona – pelo menos para ele.
Métodos de Arrecadação e Manipulação
A arrecadação não acontece apenas pelo convencimento doutrinário. Há um sofisticado conjunto de técnicas psicológicas empregadas durante os cultos para maximizar as doações. Nossa investigação identificou quatro estratégias principais:
Constrangimento Público
Em muitas igrejas, o momento da oferta é deliberadamente desenhado para expor quem contribui e quem não contribui. Envelopes são distribuídos e devem ser devolvidos, mesmo vazios. Em alguns casos, fiéis são chamados à frente por faixas de contribuição.
“Eu me sentia humilhada quando não podia contribuir. Todos percebiam quando você devolvia o envelope vazio”, relata Maria (nome fictício), ex-frequentadora de uma igreja neopentecostal em São Paulo. “Havia uma pressão silenciosa, olhares de julgamento.”
Testemunhos Ensaiados
Outra técnica comum é a apresentação de testemunhos de prosperidade durante os cultos. Pessoas são chamadas ao palco para contar como suas vidas melhoraram financeiramente depois que começaram a contribuir regularmente.
Uma investigação da Polícia Federal em 2023 descobriu que, em algumas igrejas, esses testemunhos são ensaiados e, por vezes, completamente fabricados. Ex-membros relatam que eram instruídos sobre o que dizer e como emocionar a plateia.
Pressão e Culpa
O uso de versículos bíblicos descontextualizados é frequente para gerar culpa em quem hesita em contribuir. Malaquias 3:8-10, que fala sobre “roubar de Deus” ao não pagar o dízimo, é um dos mais citados.
“Pastores dizem que quem não contribui está ‘roubando de Deus’ e pode sofrer consequências. Criam um medo constante de punição divina”, explica a psicóloga Marta Alves, especialista em manipulação religiosa.
Promessa de Retorno Financeiro
A doação é frequentemente apresentada como um “investimento espiritual” com retorno garantido. “Dê R$100 e receba R$1.000”, “Plante uma semente de R$1.000 para colher R$10.000” são frases comuns em cultos de prosperidade.
Essa lógica transacional distorce completamente o conceito original de dízimo e oferta, transformando a relação com o divino em uma espécie de negociação comercial.
A tecnologia também foi incorporada a esse sistema. Máquinas de cartão circulam durante os cultos, aplicativos facilitam doações instantâneas, e algumas igrejas até implementaram sistemas de débito automático para o dízimo.
Casos Documentados de Enriquecimento
O Caso Virgínio de Carvalho: 5.800% de Aumento Patrimonial
Um dos casos mais emblemáticos de enriquecimento inexplicável é o do pastor Virgínio de Carvalho, ex-presidente da Assembleia de Deus em Sergipe. Segundo investigação do Ministério Público e reportagem do The Intercept Brasil, o pastor multiplicou seu patrimônio em 5.800% em apenas 10 anos.
Entre os bens adquiridos estão:
- Uma mansão de dois andares com mais de mil metros quadrados em Aracaju
- Um apartamento luxuoso no mesmo bairro
- Um flat em Campos do Jordão (SP)
- Uma sala comercial em condomínio de luxo
- Carros importados, incluindo um Volvo XC40 Pure Electric e uma Mercedes Benz
O salário declarado do pastor era de aproximadamente R$ 30 mil mensais, valor insuficiente para justificar tal acúmulo de bens. Segundo a investigação, parte do dinheiro arrecadado com dízimos e ofertas era desviada para contas pessoais e de familiares.
O “Pastor do PCC”: Lavagem de Dinheiro em Nome de Deus
Outro caso alarmante é o do pastor Geraldo dos Santos Filho, conhecido como “pastor do PCC”. Ele foi preso em 2023 acusado de usar igrejas para lavar dinheiro do crime organizado.
Segundo a Polícia Federal, o pastor adquiriu sete igrejas (cinco no Rio Grande do Norte e duas em São Paulo) que serviam como fachada para a lavagem de dinheiro. Em apenas cinco meses, ele movimentou R$ 2,2 milhões em suas contas, valor incompatível com a renda declarada.
O patrimônio acumulado pelo pastor incluía imóveis de luxo, veículos importados e empresas, totalizando aproximadamente R$ 6 milhões. A investigação revelou que parte do dinheiro do tráfico de drogas era “limpa” através de doações e dízimos.
Disputa na Bola de Neve: Quando o Dízimo Vira Motivo de Guerra
A igreja Bola de Neve, conhecida por atrair um público jovem e descolado, também foi palco de disputas financeiras. Após a morte do fundador, o apóstolo Rina, sua esposa Denise Seixas assumiu a presidência, mas enfrentou resistência de outros líderes.
Segundo denúncias, documentos foram manipulados para assumir o controle da igreja e de seu fluxo financeiro. Uma empresa chamada SIAF Solutions, ligada ao ex-diretor da igreja, gerenciava 3.000 máquinas de cartão e retinha entre 3% e 5% de cada doação, gerando custos operacionais de R$ 500 mil mensais.
O caso expôs como a gestão financeira de algumas igrejas opera com pouca transparência e como o dinheiro dos fiéis pode alimentar disputas de poder entre lideranças.
O Destino do Dinheiro Arrecadado
Nossa investigação identificou quatro destinos principais para o dinheiro arrecadado com dízimos e ofertas:
Enriquecimento Pessoal
O caso mais evidente é o uso dos recursos para enriquecimento pessoal dos líderes religiosos. Mansões, carros de luxo, jatinhos particulares e viagens internacionais fazem parte do estilo de vida de muitos pastores de sucesso.
“Há uma confusão deliberada entre o patrimônio pessoal e o institucional”, explica o advogado tributarista Carlos Henrique Martins. “Muitos pastores usam recursos da igreja para custear despesas pessoais, justificando como ‘necessidades do ministério’.”
Financiamento Político
Parte significativa dos recursos também é direcionada para o financiamento de campanhas políticas. A chamada “bancada evangélica” no Congresso Nacional não é fruto do acaso, mas de investimentos estratégicos de igrejas em candidatos alinhados a seus interesses.
Em troca, esses políticos atuam para proteger e ampliar benefícios fiscais para instituições religiosas. Um exemplo recente é a decisão do governador Tarcísio de Freitas, que isentou igrejas do pagamento de ICMS em São Paulo, permitindo a importação de bens, incluindo carros de luxo, sem impostos, desde que aleguem “uso religioso”.
Expansão Institucional
Uma parcela dos recursos é, de fato, investida na expansão das próprias igrejas. Aquisição de imóveis, construção de novos templos, compra de equipamentos de som e vídeo, e investimentos em mídia fazem parte dessa estratégia.
Grandes denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus possuem emissoras de TV, gravadoras, editoras e outros empreendimentos que ampliam seu alcance e, consequentemente, sua capacidade de arrecadação.
Atividades Ilícitas
Em casos mais graves, como o do “pastor do PCC”, o dinheiro arrecadado pode estar ligado a atividades criminosas. A Polícia Federal já identificou igrejas sendo usadas para lavagem de dinheiro do tráfico de drogas, milícias e outros grupos criminosos.
A imunidade tributária e a falta de fiscalização rigorosa tornam as instituições religiosas alvos atraentes para esse tipo de operação.
O que raramente se vê é um investimento significativo em ações sociais estruturadas. “Quando existem, as ações sociais são pontuais e frequentemente usadas como marketing para atrair mais fiéis e doações”, afirma a socióloga Cristina Vital, pesquisadora de movimentos religiosos.
O Contexto Legal que Permite a Exploração
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 150, proíbe a cobrança de impostos sobre patrimônio, renda e serviços vinculados a atividades essenciais de igrejas e templos de qualquer culto. Essa imunidade tributária foi concebida para proteger a liberdade religiosa e reconhecer o papel social das instituições religiosas.
No entanto, o que era para ser uma proteção à prática religiosa se transformou, em alguns casos, em um escudo para práticas questionáveis.
“As igrejas não pagam impostos, mas também não são obrigadas a prestar contas detalhadas sobre a origem e o destino dos recursos”, explica Eduardo Natal, mestre em Direito Tributário. “Isso cria um ambiente propício para abusos.”
Embora existam obrigações acessórias, como a Declaração de Imposto de Renda para Pessoa Jurídica (DIRF) e demonstrações contábeis, a fiscalização é limitada e raramente resulta em punições significativas.
Em outros países, a situação é diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, pastores são obrigados a pagar impostos sobre sua renda pessoal, e igrejas podem perder a imunidade tributária se fizerem campanha político-partidária. Na Argentina, apenas a Igreja Católica possui imunidade tributária completa; outras denominações religiosas são obrigadas a pagar impostos.
No Brasil, há iniciativas para mudar esse cenário. O Projeto de Lei 1.089/2023 propõe criminalizar o charlatanismo religioso e a exploração financeira de fiéis. No entanto, a forte influência da bancada evangélica no Congresso tem dificultado o avanço de propostas que aumentem a fiscalização sobre igrejas.
Depoimentos e Histórias Reais
Os relatos de quem viveu por dentro esse sistema são reveladores. João (nome fictício), ex-pastor de uma igreja neopentecostal em Belo Horizonte, conta que havia metas de arrecadação para cada culto.
“Éramos pressionados a aumentar a arrecadação a cada semana. Quem não conseguia era visto como um pastor sem unção, sem capacidade espiritual”, relata. “Eu via famílias se endividando para contribuir, enquanto a liderança vivia no luxo. Foi quando percebi que não podia mais fazer parte daquilo.”
Ana, ex-fiel de uma igreja em Porto Alegre, conta que chegou a usar o dinheiro do aluguel para pagar o dízimo. “O pastor dizia que era um teste de fé, que Deus honraria meu sacrifício. Acabei despejada, com duas crianças pequenas, e quando procurei a igreja, disseram que minha fé ainda não era suficiente.”
Psicólogos que atendem ex-membros de igrejas relatam padrões de trauma religioso. “Muitos desenvolvem ansiedade, depressão e uma relação disfuncional com dinheiro”, explica o psicólogo Rafael Soares. “Há um sentimento profundo de traição quando percebem que foram manipulados em nome da fé.”
Impacto Social e Consequências
O impacto desse sistema vai além das finanças individuais. Em comunidades vulneráveis, onde igrejas neopentecostais têm forte presença, o ciclo de doações pode perpetuar a pobreza. Famílias que mal conseguem pagar as contas básicas são incentivadas a doar parte significativa de sua renda, na esperança de uma prosperidade que raramente se concretiza.
Há também um impacto na credibilidade das instituições religiosas como um todo. “Igrejas que trabalham seriamente, com transparência e compromisso social, acabam prejudicadas pela má fama gerada por aquelas que exploram a fé”, observa o pastor Henrique Vieira, conhecido por seu trabalho social e posicionamentos críticos a abusos religiosos.
A polarização social e política também é intensificada, com líderes religiosos usando seu poder econômico e influência sobre os fiéis para promover agendas específicas, muitas vezes alinhadas a interesses econômicos e políticos particulares.
Alternativas e Contrapontos
Nem todas as igrejas evangélicas seguem esse modelo exploratório. Existem denominações que adotam práticas transparentes de gestão financeira, publicando balanços detalhados e submetendo-se a auditorias independentes.
A Igreja Cristã Metropolitana (ICM), por exemplo, não cobra dízimo nem oferta dos membros durante os cultos. Seus pastores são voluntários e exercem outras profissões para se sustentar. Os recursos arrecadados são usados exclusivamente para manutenção do espaço e projetos sociais, com prestação de contas regular aos membros.
Outras igrejas históricas, como algumas congregações batistas, metodistas e presbiterianas, também mantêm sistemas mais transparentes, com conselhos fiscais eleitos pelos membros e separação clara entre o patrimônio institucional e pessoal dos líderes.
“É possível viver a fé de forma autêntica, sem transformá-la em um negócio”, defende o pastor Ariovaldo Ramos, da Comunidade Cristã Reformada. “O problema não é a religião em si, mas o uso que alguns fazem dela para explorar pessoas vulneráveis.”
A investigação revela um sistema complexo onde a fé é transformada em um produto lucrativo, beneficiando principalmente aqueles que estão no topo da hierarquia religiosa. Enquanto pastores acumulam fortunas, muitos fiéis permanecem na pobreza, sustentando um ciclo que se alimenta de esperança, medo e manipulação psicológica.
A falta de fiscalização adequada, combinada com a imunidade tributária e a influência política de líderes religiosos, cria um ambiente propício para abusos. Sem transparência e prestação de contas, é difícil para os fiéis saberem exatamente para onde vai o dinheiro que doam com tanta fé.
É importante ressaltar que a crítica não se dirige à religião ou à fé em si, mas às práticas exploratórias que se aproveitam da sinceridade e vulnerabilidade de milhões de brasileiros. A espiritualidade pode e deve ser vivida sem que se torne um fardo financeiro ou um instrumento de enriquecimento para poucos.
Para que isso mude, são necessárias mais transparência, fiscalização adequada e, principalmente, conscientização dos fiéis sobre seus direitos. Afinal, como disse certa vez o teólogo Leonardo Boff, “a verdadeira fé liberta, não aprisiona” – inclusive financeiramente.
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